10.11.09

ΜΑΣΑΝΤΟΥ ΝΤΕ ΑΣΙΣ: ΠΥΛΑΔΗΣ ΚΑΙ ΟΡΕΣΤΗΣ

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Pílades e Orestes
por Machado de Assis
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Quintanilha engendrou Gonçalves. Tal era a impressão que davam os dois juntos, não que se parecessem. Ao contrário, Quintanilha tinha o rosto redondo, Gonçalves comprido, o primeiro era baixo e moreno, o segundo alto e claro, e a expressão total divergia inteiramente. Acresce que eram quase da mesma idade. A idéia da paternidade nascia das maneiras com que o primeiro tratava o segundo; um pai não se desfaria mais em carinhos, cautelas e pensamentos.
Tinham estudado juntos, morado juntos, e eram bacharéis do mesmo ano. Quintanilha não seguiu advocacia nem magistratura, meteu-se na política; mas, eleito deputado provincial em 187... cumpriu o prazo da legislatura e abandonou a carreira. Herdara os bens de um tio, que lhe davam de renda cerca de trinta contos de réis. Veio para o seu Gonçalves, que advogava no Rio de Janeiro.
Posto que abastado, moço, amigo do seu único amigo, não se pode dizer que Quintanilha fosse inteiramente feliz, como vais ver. Ponho de lado o desgosto que lhe trouxe a herança com o ódio dos parentes; tal ódio foi que ele esteve prestes a abrir mão dela, e não o fez porque o amigo Gonçalves, que lhe dava idéias e conselhos, o convenceu de que semelhante ato seria rematada loucura.
— Que culpa tem você que merecesse mais a seu tio que os outros parentes? Não foi você que fez o testamento nem andou a bajular o defunto, como os outros. Se ele deixou tudo a você, é que o achou melhor que eles; fique-se com a fortuna que é a vontade do morto, e não seja tolo.
Quintanilha acabou concordando. Dos parentes alguns buscaram reconciliar-se com ele, mas o amigo mostrou-lhe a intenção recôndita dos tais, e Quintanilha não lhes abriu a porta. Um desses, ao vê-lo ligado com o antigo companheiro de estudos, bradava por toda a parte:
— Aí está, deixa os parentes para se meter com estranhos; há de ver o fim que leva.
Ao saber disto, Quintanilha correu a contá-lo a Gonçalves, indignado. Gonçalves sorriu, chamou-lhe tolo e aquietou-lhe o ânimo; não valia a pena irritar-se por ditinhos.
— Uma só coisa desejo, continuou, é que nos separemos, para que se não diga...
— Que se não diga o quê? É boa! Tinha que ver, se eu passava a escolher as minhas amizades conforme o capricho de alguns peraltas sem-vergonha!
— Não fale assim, Quintanilha. Você é grosseiro com seus parentes.
— Parentes do diabo que os leve! Pois eu hei de viver com as pessoas que me forem designadas por meia dúzia de velhacos que o que querem é comer-me o dinheiro? Não, Gonçalves; tudo o que você quiser, menos isso. Quem escolhe os meus amigos sou eu, é o meu coração. Ou você está... está aborrecido de mim?
— Eu? Tinha graça.
— Pois então?
— Mas é...
— Não é tal!
A vida que viviam os dois era a mais unida deste mundo. Quintanilha acordava, pensava no outro, almoçava e ia ter com ele. Jantavam juntos, faziam alguma visita, passeavam ou acabavam a noite no teatro. Se Gonçalves tinha algum trabalho que fazer à noite, Quintanilha ia ajudá-lo como obrigação; dava busca aos textos de lei, marcava-os, copiava-os, carregava os livros. Gonçalves esquecia com facilidade, ora um recado, ora uma carta, sapatos, charutos, papéis. Quintanilha supria-lhe a memória. Às vezes, na Rua do Ouvidor, vendo passar as moças, Gonçalves lembrava-se de uns autos que deixara no escritório. Quintanilha voava a buscá-los e tornava com eles, tão contente que não se podia saber se eram autos, se a sorte grande; procurava-o ansiosamente com os olhos, corria, sorria, morria de fadiga.
— São estes?
— São; deixa ver, são estes mesmos. Dá cá.
— Deixa, eu levo.
A princípio, Gonçalves suspirava:
— Que maçada que dei a você!
Quintanilha ria do suspiro com tão bom humor que o outro, para não o molestar, não se acusou de mais nada; concordou em receber os obséquios. Com o tempo, os obséquios ficaram sendo puro ofício. Gonçalves dizia ao outro: "Você hoje há de lembrar-me isto e aquilo." E o outro decorava as recomendações, ou escrevia-as, se eram muitas. Algumas dependiam de horas; era de ver como o bom Quintanilha suspirava aflito, à espera que chegasse tal ou tal hora para ter o gosto de lembrar os negócios ao amigo. E levava-lhe as cartas e papéis, ia buscar as respostas, procurar as pessoas, esperá-las na estrada de ferro, fazia viagens ao interior. De si mesmo descobria-lhe bons charutos, bons jantares, bons espetáculos. Gonçalves já não tinha liberdade de falar de um livro novo, ou somente caro, que não achasse um exemplar em casa.
— Você é um perdulário, dizia-lhe em tom repreensivo.
— Então gastar com letras e ciências é botar fora? É, boa! concluía o outro.
No fim do ano quis obrigá-lo a passar fora as férias. Gonçalves acabou aceitando, e o prazer que lhe deu com isto foi enorme. Subiram a Petrópolis. Na volta, serra abaixo, como falassem de pintura, Quintanilha advertiu que não tinham ainda uma tela com o retrato dos dois, e mandou fazê-la. Quando a levou ao amigo, este não pôde deixar de lhe dizer que não prestava para nada. Quintanilha ficou sem voz.
— É uma porcaria, insistiu Gonçalves.
— Pois o pintor disse-me...
— Você não entende de pintura, Quintanilha, e o pintor aproveitou a ocasião para meter a espiga. Pois isto é cara decente? Eu tenho este braço torto?
— Que ladrão!
— Não, ele não tem culpa, fez o seu negócio; você é que não tem o sentimento da arte, nem prática, e espichou-se redondamente. A intenção foi boa, creio...
— Sim, a intenção foi boa.
— E aposto que já pagou?
— Já.
Gonçalves abanou a cabeça, chamou-lhe ignorante e acabou rindo. Quintanilha, vexado e aborrecido, olhava para a tela, até que sacou de um canivete e rasgou-a de alto a baixo. Como se não bastasse esse gesto de vingança, devolveu a pintura ao artista com um bilhete em que lhe transmitiu alguns dos nomes recebidos e mais o de asno. A vida tem muitas de tais pagas. Demais, uma letra de Gonçalves que se venceu dali a dias e que este não pôde pagar, veio trazer ao espírito de Quintanilha uma diversão. Quase brigaram; a idéia de Gonçalves era reformar a letra; Quintanilha, que era o endossante, entendia não valer a pena pedir o favor por tão escassa quantia (um conto e quinhentos), ele emprestaria o valor da letra, e o outro que lhe pagasse, quando pudesse. Gonçalves não consentiu e fez-se a reforma. Quando, ao fim dela, a situação se repetiu, o mais que este admitiu foi aceitar uma letra de Quintanilha, com o mesmo juro.
— Você não vê que me envergonha, Gonçalves? Pois eu hei de receber juro de você...?
— Ou recebe, ou não fazemos nada.
— Mas, meu querido...
Teve que concordar. A união dos dois era tal que uma senhora chamava-lhes os "casadinhos de fresco", e um letrado, Pílades e Orestes). Eles riam, naturalmente, mas o riso de Quintanilha trazia alguma coisa parecida com lágrimas: era, nos olhos, uma ternura úmida. Outra diferença é que o sentimento de Quintanilha tinha uma nota de entusiasmo, que absolutamente faltava ao de Gonçalves; mas, entusiasmo não se inventa. É claro que o segundo era mais capaz de inspirá-lo ao primeiro do que este a ele. Em verdade, Quintanilha era mui sensível a qualquer distinção; uma palavra, um olhar bastava a acender-lhe o cérebro. Uma pancadinha no ombro ou no ventre, com o fim de aprová-lo ou só acentuar a intimidade, era para derretê-lo de prazer. Contava o gesto e as circunstâncias durante dois e três dias.
Não era raro vê-lo irritar-se, teimar, descompor os outros. Também era comum vê-lo rir-se; alguma vez o riso era universal, entornava-se-lhe da boca, dos olhos, da testa, dos braços, das pernas, todo ele era um riso único. Sem ter paixões, estava longe de ser apático.
A letra sacada contra Gonçalves tinha o prazo de seis meses. No dia do vencimento, não só não pensou em cobrá-la, mas resolveu ir jantar a algum arrabalde para não ver o amigo, se fosse convidado à reforma. Gonçalves destruiu todo esse plano; logo cedo, foi levar-lhe o dinheiro. O primeiro gesto de Quintanilha foi recusá-lo, dizendo-lhe que o guardasse, podia precisar dele; o devedor teimou em pagar e pagou.
Quintanilha acompanhava os atos de Gonçalves; via a constância do seu trabalho, o zelo que ele punha na defesa das demandas, e vivia cheio de admiração. Realmente, não era grande advogado, mas na medida das suas habilitações, era distinto.
— Você por que não se casa? perguntou-lhe um dia; um advogado precisa casar.
Gonçalves respondia rindo. Tinha uma tia, única parenta, a quem ele queria muito, e que lhe morreu, quando eles iam em trinta anos. Dias depois, dizia ao amigo:
— Agora só me resta você.
Quintanilha sentiu os olhos molhados, e não achou que lhe respondesse. Quando se lembrou de dizer que "iria até à morte" era tarde. Redobrou então de carinhos, e um dia acordou com a idéia de fazer testamento. Sem revelar nada ao outro, nomeou-o testamenteiro e herdeiro universal.
— Guarde-me este papel, Gonçalves, disse-lhe entregando o testamento. Sinto-me forte, mas a morte é fácil, e não quero confiar a qualquer pessoa as minhas últimas vontades.
Foi por esse tempo que sucedeu um caso que vou contar.
Quintanilha tinha uma prima segunda, Camila, moça de vinte e dois anos, modesta, educada e bonita. Não era rica; o pai, João Bastos, era guarda-livros de uma casa de café. Haviam brigado por ocasião da herança; mas, Quintanilha foi ao enterro da mulher de João Bastos, e este ato de piedade novamente os ligou. João Bastos esqueceu facilmente alguns nomes crus que dissera do primo, chamou-lhe outros nomes doces, e pediu-lhe que fosse jantar com ele. Quintanilha foi e tornou a ir. Ouviu ao primo o elogio da finada mulher; numa ocasião em que Camila os deixou sós, João Bastos louvou as raras prendas da filha, que afirmava haver recebido integralmente a herança moral da mãe.
— Não direi isto nunca à pequena, nem você lhe diga nada. É modesta, e, se começarmos a elogiá-la, pode perder-se. Assim, por exemplo, nunca lhe direi que é tão bonita como foi a mãe, quando tinha a idade dela; pode ficar vaidosa. Mas a verdade é que é mais, não lhe parece? Tem ainda o talento de tocar piano, que a mãe não possuía.
Quando Camila voltou à sala de jantar, Quintanilha sentiu vontade de lhe descobrir tudo, conteve-se e piscou o olho ao primo. Quis ouvi-la ao piano; ela respondeu, cheia de melancolia:
— Ainda não, há apenas um mês que mamãe faleceu, deixe passar mais tempo. Demais, eu toco mal.
— Mal?
— Muito mal.
Quintanilha tornou a piscar o olho ao primo, e ponderou à moça que a prova de tocar bem ou mal só se dava ao piano. Quanto ao prazo, era certo que apenas passara um mês; todavia era também certo que a música era uma distração natural e elevada. Além disso, bastava tocar um pedaço triste. João Bastos aprovou este modo de ver e lembrou uma composição elegíaca. Camila abanou a cabeça.
— Não, não, sempre é tocar piano; os vizinhos são capazes de inventar que eu toquei uma polca.
Quintanilha achou graça e riu. Depois concordou e esperou que os três meses fossem passados. Até lá, viu a prima algumas vezes, sendo as três últimas visitas mais próximas e longas. Enfim, pôde ouvi-la tocar piano, e gostou. O pai confessou que, ao princípio, não gostava muito daquelas músicas alemãs; com o tempo e o costume achou-lhes sabor. Chamava à filha "a minha alemãzinha", apelido que foi adotado por Quintanilha apenas modificado para o plural: "a nossa alemãzinha". Pronomes possessivos dão intimidade; dentro em pouco, ela existia entre os três — ou quatro, se contarmos Gonçalves, que ali foi apresentado pelo amigo; — mas fiquemos nos três.
Que ele é coisa já farejada por ti, leitor sagaz. Quintanilha acabou gostando da moça. Como não, se Camila tinha uns longos olhos mortais? Não é que os pousasse muita vez nele, e, se o fazia, era com tal ou qual constrangimento, a princípio como as crianças que obedecem sem vontade às ordens do mestre ou do pai; mas pousava-os, e eles eram tais que, ainda sem intenção, feriam de morte. Também sorria com freqüência e falava com graça. Ao piano, e por mais aborrecida que tocasse, tocava bem. Em suma, Camila não faria obra de impulso próprio, sem ser por isso menos feiticeira. Quintanilha descobriu um dia de manhã que sonhara com ela a noite toda, e à noite que pensara nela todo o dia, e concluiu da descoberta que a amava e era amado. Tão tonto ficou que esteve prestes a imprimi-lo nas folhas públicas. Quando menos, quis dizê-lo ao amigo Gonçalves e correu ao escritório deste. A afeição de Quintanilha complicava-se de respeito e temor. Quase a abrir a boca, engoliu outra vez o segredo. Não ousou dizê-lo nesse dia nem no outro. Antes dissesse; talvez fosse tempo de vencer a campanha. Adiou a revelação por uma semana. Um dia foi jantar com o amigo, e, depois de muitas hesitações, disse-lhe tudo; amava a prima e era amado.
— Você aprova, Gonçalves?
Gonçalves empalideceu — ou, pelo menos, ficou sério; nele a seriedade confundia-se com a palidez. Mas, não; verdadeiramente ficou pálido.
— Aprova? repetiu Quintanilha.
Após alguns segundos, Gonçalves ia abrir a boca para responder, mas fechou-a de novo, e fitou os olhos "em ontem", como ele mesmo dizia de si, quando os estendia ao longe. Em vão Quintanilha teimou em saber o que era, o que pensava, se aquele amor era asneira. Estava tão acostumado a ouvir-lhe este vocábulo que já lhe não doía nem afrontava, ainda em matéria tão melindrosa e pessoal. Gonçalves tornou a si daquela meditação, sacudiu os ombros, com ar desenganado, e murmurou esta palavra tão surdamente que o outro mal a pôde ouvir:
— Não me pergunte nada; faça o que quiser.
— Gonçalves, que é isso? perguntou Quintanilha, pegando-lhe nas mãos, assustado.
Gonçalves soltou um grande suspiro, que, se tinha asas, ainda agora estará voando. Tal foi, sem esta forma paradoxal, a impressão de Quintanilha. O relógio da sala de jantar bateu oito horas, Gonçalves alegou que ia visitar um desembargador, e o outro despediu-se.
Na rua, Quintanilha parou atordoado. Não acabava de entender aqueles gestos, aquele suspiro, aquela palidez, todo o efeito misterioso da notícia dos seus amores. Entrara e falara, disposto a ouvir do outro um ou mais daqueles epítetos costumados e amigos, idiota, crédulo, paspalhão, e não ouviu nenhum. Ao contrário, havia nos gestos de Gonçalves alguma coisa que pegava com o respeito. Não se lembrava de nada, ao jantar, que pudesse tê-lo ofendido; foi só depois de lhe confiar o sentimento novo que trazia a respeito da prima que o amigo ficou acabrunhado.
— Mas, não pode ser, pensava ele; o que é que Camila tem que não possa ser boa esposa?
Nisto gastou, parado, defronte da casa, mais de meia hora. Advertiu então que Gonçalves não saíra. Esperou mais meia hora, nada. Quis entrar outra vez, abraçá-lo, interrogá-lo... Não teve forças; enfiou pela rua fora, desesperado. Chegou à casa de João Bastos, e não viu Camila; tinha-se recolhido, constipada. Queria justamente contar-lhe tudo, e aqui é preciso explicar que ele ainda não se havia declarado à prima. Os olhares da moça não fugiam dos seus; era tudo, e podia não passar de faceirice. Mas o lance não podia ser melhor para clarear a situação. Contando o que se passara com o amigo, tinha o ensejo de lhe fazer saber que a amava e ia pedi-la ao pai. Era uma consolação no meio daquela agonia; o acaso negou-lha, e Quintanilha saiu da casa, pior do que entrara. Recolheu-se à sua.
Não dormiu antes das duas horas da manhã, e não foi para repouso, senão para agitação maior e nova. Sonhou que ia a atravessar uma ponte velha e longa, entre duas montanhas, e a meio caminho viu surdir debaixo um vulto e fincar os pés defronte dele. Era Gonçalves. "Infame, disse este com os olhos acesos, por que me vens tirar a noiva de meu coração, a mulher que eu amo e é minha? Toma, toma logo o meu coração, é mais completo." E com um gesto rápido abriu o peito, arrancou o coração e meteu-lho na boca. Quintanilha tentou pegar da víscera amiga e repô-la no peito de Gonçalves; foi impossível. Os queixos acabaram por fechá-la. Quis cuspi-la, e foi pior; os dentes cravaram-se no coração. Quis falar, mas vá alguém falar com a boca cheia daquela maneira. Afinal o amigo ergueu os braços e estendeu-lhe as mãos com o gesto de maldição que ele vira nos melodramas, em dias de rapaz; logo depois, brotaram-lhe dos olhos duas imensas lágrimas, que encheram o vale de água, atirou-se abaixo e desapareceu. Quintanilha acordou sufocado.
A ilusão do pesadelo era tal que ele ainda levou as mãos à boca, para arrancar de lá o coração do amigo. Achou a língua somente, esfregou os olhos e sentou-se. Onde estava? Que era? E a ponte? E o Gonçalves? Voltou a si de todo, compreendeu e novamente se deitou, para outra insônia, menor que a primeira, é certo; veio a dormir às quatro horas.
De dia, rememorando toda a véspera, realidade e sonho, chegou à conclusão de que o amigo Gonçalves era seu rival, amava a prima dele, era talvez amado por ela... Sim, sim, podia ser. Quintanilha passou duas horas cruéis. Afinal pegou em si e foi ao escritório de Gonçalves, para saber tudo de uma vez; e, se fosse verdade, sim, se fosse verdade...
Gonçalves redigia umas razões de embargo. Interrompeu-as para fitá-lo um instante, erguer-se, abrir o armário de ferro, onde guardava os papéis graves, tirar de lá o testamento de Quintanilha, e entregá-lo ao testador.
— Que é isto?
— Você vai mudar de estado, respondeu Gonçalves, sentando-se à mesa.
Quintanilha sentiu-lhe lágrimas na voz; assim lhe pareceu, ao menos. Pediu-lhe que guardasse o testamento; era o seu depositário natural. Instou muito; só lhe respondia o som áspero da pena correndo no papel. Não corria bem a pena, a letra era tremida, as emendas mais numerosas que de costume, provavelmente as datas erradas. A consulta dos livros era feita com tal melancolia que entristecia o outro. Às vezes, parava tudo, pena e consulta, para só ficar o olhar fito "em ontem".
— Entendo, disse Quintanilha subitamente; ela será tua.
— Ela quem? quis perguntar Gonçalves, mas já o amigo voava, escada abaixo, como uma flecha, e ele continuou as suas razões de embargo.
Não se adivinha todo o resto; basta saber o final. Nem se adivinha nem se crê; mas a alma humana é capaz de esforços grandes, no bem como no mal. Quintanilha fez outro testamento, legando tudo à prima, com a condição de desposar o amigo. Camila não aceitou o testamento, mas ficou tão contente, quando o primo lhe falou das lágrimas de Gonçalves, que aceitou Gonçalves e as lágrimas. Então Quintanilha não achou melhor remédio que fazer terceiro testamento legando tudo ao amigo.
O final da história foi dito em latim. Quintanilha serviu de testemunha ao noivo, e de padrinho aos dois primeiros filhos. Um dia em que, levando doces para os afilhados, atravessava a Praça Quinze de Novembro, recebeu uma bala revoltosa Sófocles. Orai por ele!
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Machado de Assis

5 σχόλια:

Deus_grego είπε...

Pílades e Orestes”:
A Sedução das Faces Mudas

Jessé dos Santos Maciel

Inserido na coletânea de contos Relíquias de Casa Velha (1906), o texto “Pílades e Orestes” reveste-se de especial importância por, no mínimo, sugerir uma abordagem machadiana para a questão homoerótica. Preferimos a utilização do termo homoerotismo em lugar de homossexualismo devido à origem, ao histórico de uso e as implicações do segundo termo, o qual apresenta o relacionamento erótico entre pessoas do mesmo sexo como o resultado de disfunção biológica.

Conforme foi sobejamente demonstrado por Michel Foucault em sua História da Sexualidade, e Thomas Laqueur em Inventado o Sexo, as categorias sexo e gênero têm sido vivenciadas e representadas de maneiras distintas, conforme o período e a cultura focados. Portanto, apesar da atração e prática homoeróticas sempre terem existido, suas formas particulares de significação variaram grandemente, nem sempre sendo proscritas.

Entre os gregos, por exemplo, a atração erótica entre pessoas do mesmo sexo possuía um caráter didático/iniciático sendo encarada de forma normal e sendo inclusive exaltada. Veja-se o exemplo dos diálogos platônicos de O Banquete, nos quais a afeição e o relacionamento entre um homem mais velho e seu pupilo foram exaltados. É preciso uma apreciação cuidadosa para compreender a função social da pederastia entre os gregos dentro de seus limites, o que pode ser útil para uma aproximação ao conto.

Podemos falar com precisão na existência de pansexualismo na Grécia do período clássico, havendo liberdade para o cidadão satisfazer seus impulsos com mulheres, escravos, ou com outros homens, conforme as preferências pessoais. Entretanto, conforme dito anteriormente a relação homoerótica foi socialmente aceita e exaltada apenas quando circunscrita a um homem mais velho e a um adolescente impúbere. A este respeito manifesta-se Jean-Philippe Catonné nos seguintes termos:

Finalmente, assim como na Babilônia, o homem tem a possibilidade de fazer amor com os dois sexos. Contudo, um espaço particular é reservado para o que chamamos, injustamente, de homossexualidade grega. Ela é, antes de tudo, uma pederastia. (1994: p.32)

Entre os gregos, “A pederastia é uma sobrevivência de um rito de iniciação, [...]” (CATTONÉ, 1994: p.33), que é socialmente útil à medida que implica na instrução do jovem nos modos do cidadão se conduzir na esfera pública. Nesta sociedade patriarcal a assimetria e a desigualdade entre os sexos são gritantes, havendo liberdade para a satisfação do impulso erótico masculino e para a vivência, por parte do homem, de uma rica vida social fora do lar. Portanto:

Neste “clube de homens” que constitui a cidade grega, as funções são bem delimitadas. À heterossexualidade cabe a formação do indivíduo físico. A homofilia encarrega-se do indivíduo social e cultural. O adulto jovem e ativo, após o seu casamento, pode buscar o prazer com as mulheres ou com os rapazes, ou ainda com ambos. É uma questão de escolha, guiada por um gosto pessoal. (CATTONÉ, 1994: p.38).

Deus_grego είπε...

A função social da pederastia, ensinar o rapaz a tornar-se um cidadão, era cumprida pelo estabelecimento de laços que incluíam o exercício da sexualidade, mas que estavam bem delimitados em termos de papéis dos sujeitos e de duração do envolvimento. Ao homem mais velho, o amante (erastes), cabia a posição ativa, e ao rapaz, o amado (eromenos), cabia a posição passiva, sendo aceitável o relacionamento até o fim da puberdade, marcada pelo nascimento dos primeiros pêlos no queixo e nas coxas.

Uma vez superada a puberdade, esperava-se que o jovem adulto assumisse a cidadania. Caso continuasse a vivenciar relacionamentos com outros homens da mesma forma que na adolescência, ocupando a posição passiva, o homem perderia a posição de cidadão. “Para um cidadão, a passividade sexual é que representa problema” (CATTONÉ, 1994: p.34).

Já na sociedade brasileira do século XIX, o relacionamento erótico entre dois homens poderia ser interpretado de duas formas distintas, conforme a localização espacial, social e temporal dos sujeitos envolvidos. A primeira abordagem do homoerotismo, que pode ser chamada de religiosa, correspondia à interpretação dos valores católicos tradicionais, os quais identificavam as práticas homoeróticas com o pecado de sodomia, definido durante boa parte do período de vigência da Inquisição como a prática do coito anal. A segunda abordagem, que se afirmou de maneira convincente após a revolução burguesa na França, manteve a noção de uma ordem natural para as práticas sexuais, cuja transgressão poderia ser interpretada como manifestação patológica.

Em “Pílades e Orestes”, Machado de Assis lançou mão da referência a um mito grego transposto para o teatro ainda na antiguidade, sob a forma de tragédias compostas pelos três grandes do período de ouro do teatro clássico: Ésquilo, Eurípides e Sófocles. A este respeito, o narrador machadiano faz referência no final do conto, ao evocar o modelo grego como contraste. Entretanto, nesta narrativa e em outras como: “Viver!”, “O anel de Polícrates”, “A visita de Alcebíades”, o autor soube apropriar-se habilmente do mito para a elaboração de um texto que exprime elementos de sua própria cultura, pela re-significação dos referenciais diegéticos, em geral a serviço da crítica à sociedade de classes de então. A este respeito é útil considerar o papel do leitor inscrito no texto, o narratário, com o qual o narrador dialoga, geralmente buscando despistar o Leitor-Modelo, ou pressuposto.[1]

O mito de Orestes, cujos elementos podem ser colhidos na Odisséia, no Catálogo das Heroínas, no poema Oresteia, e na Pítica XI, relata os acontecimentos que seguiram o retorno do rei Agamêmnon a Argos. Após o assassinato do comandante da guerra de Tróia, Egisto e sua cúmplice a rainha Clitemnestra voltaram-se para Orestes, o filho do rei morto, uma vez que eliminado o herdeiro legítimo do trono ambos estariam seguros e livres da vingança pelo sangue derramado.

Salvo da morte por sua irmã Electra, Orestes foi levado para a corte de Estrófio rei de Crisa onde cresceu seguro e pôde conquistar a amizade de Pílades, filho do rei. Atingida a maioridade, Orestes obedeceu às ordens de Apolo e retornou para Argos com Pílades, já então amigo inseparável, para vingar o terrível crime cometido por Egisto e por sua própria mãe, Clitemnestra. Ajudado por Electra, que o introduz no palácio, e pelo inseparável Pílades, que o anima a agir no momento em que hesita diante dos seios desnudos da mãe suplicante, Orestes executa a justiça de Apolo.

Deus_grego είπε...

Surge então no relato do mito aquele gérmen do trágico que inspirou a tantos na antiguidade: a condição do homem frente às demandas de potências que estão além de seu controle, levando às ações cujas conseqüências esmagadoras ele não pode evitar. Diante da execução da mãe sobrevém a loucura e o tormento das Fúrias, as vingadoras dos crimes contra consangüíneos, Orestes havia cometido o matricídio! Purificado do crime por Apolo, em Delfos, e livrado das Fúrias após julgamento em Atenas, presidido pela própria deusa Atena, Orestes recebeu ordem de partir em busca de uma estátua de Ártemis em Táuris, que o poderia livrar da loucura.

No conto de Machado é narrada a história do relacionamento entre dois homens que haviam estudado juntos, morado juntos, e alcançado o bacharelado no mesmo ano, Quintanilha e Gonçalves. Provenientes de estratos sociais diferentes, uma vez que o primeiro nunca trabalhou, tendo sido eleito deputado provincial, o que demandava a posse de certos recursos financeiros. Já o outro tendo sido obrigado a trabalhar como advogado, desde cedo, para sobreviver. Reencontram-se os amigos, após o recebimento de uma gorda herança que um tio havia legado a Quintanilha. Assustado com a pressão e os protestos dos familiares, foi no querido Gonçalves que Quintanilha encontrou o suporte para resistir, mantendo a exclusividade na herança mesmo diante dos protestos dos parentes.

Passada a tormenta suscitada pela herança, é em Gonçalves que Quintanilha encontra um substituto para os parentes com os quais se indispôs, e a quem despreza como sendo apenas simples interesseiros. Esta proximidade entre os dois jovens solteiros atrai a atenção de alguns que os chamam de casadinhos de novo, uma vez que é impossível para Quintanilha disfarçar a atração e a fascinação que nutre pelo amigo, expressa pela atenção exagerada que dispensa, pelos presentes dispendiosos e pelos empréstimos desinteressados. A proximidade entre ambos somente diminui após a execução de uma idéia nascida no retorno das férias, que compartilharam em Petrópolis, a confecção de um quadro em que ambos aparecem lado a lado, supostamente abraçados e tendo um deles a cabeça pendendo sobre o ombro do outro.

Na exibição do quadro que retratava os amigos desencadeia-se uma violenta reação de Gonçalves, supostamente dirigida contra as habilidades do pintor e o gosto do amigo, conflito que é resolvido com a destruição da obra e a ridicularização do suposto culpado, o pintor. Após o incidente, Quintanilha procura restabelecer o contato com a família, através da visita a um primo recém viúvo, que tem uma linda, prendada e virtuosa filha, possuidora da herança moral da mãe. Convencido, após algumas visitas, que estava apaixonado pela moça, Quitanilha contou ao amigo o intento de casar-se com ela, o que desencadeou uma reação fria de dissimulada decepção.

Deus_grego είπε...

O mal estar entre os amigos somente é resolvido com a desistência de Quintanilha do intento de desposar Camila, com quem inclusive já tivera um sonho. O “apaixonado” Quintanilha, após um pesadelo no qual compreendeu a verdade por trás da reação fria do amigo: Gonçalves amava a jovem e provavelmente era correspondido, renuncia à idéia de seu casamento. Busca então promover o matrimônio do amigo com a filha de seu primo, pelo condicionamento da posse de sua herança à efetivação do enlace entre ambos.

Realizado o intento de casar Gonçalves e a jovem Camila, Quintanilha manteve o amigo e reconciliou-se com a família, que foi representada pela jovem de olhos fatais. Anos após o casamento, tendo sido testemunha ao noivo e padrinho dos dois filhos, morreu Quintanilha, vítima de uma bala perdida em meio à revolta de 1893 (Revolta da Armada). O narrador fecha o conto assim:

Está enterrado no cemitério de S. João Batista; a sepultura é simples, a pedra tem um epitáfio que termina com esta pia frase: “Orai por ele!” É também o fecho da minha história. Orestes vive ainda, sem os remorsos do modelo grego. Pílades é agora o personagem mudo de Sófocles. Orai por ele! (ASSIS, 1997: p.715)

Considerando as reflexões do professor Antonio Candido no texto “Esquema de Machado de Assis”, é possível postular que o conto “Pílades e Orestes” articula-se no cruzamento de, no mínimo, duas linhas mestras da obra de Machado: o problema da identidade e o homem, objeto do homem. Em nível mais profundo, também seria possível argumentar em favor de um subtexto que articula outras duas temáticas machadianas: a relação entre o fato real e o fato imaginado e a relatividade dos valores morais. É no segundo nível que argumentamos em favor de uma tentativa de exploração do homoerotismo.

Seguindo uma primeira linha de interpretação do texto, poderíamos atribuir a fascinação de Quintanilha ao desejo de compartilhar as qualidades do outro pela proximidade. No Brasil da burguesia ascendente do século XIX, no qual a importância dos advogados e magistrados somente sabia crescer, seria compreensível que um homem de provável origem aristocrática, que jamais precisara trabalhar, ficasse fascinado com as habilidades dos homens que na nova ordem jurídica das coisas detinham uma forma de poder tanto crescente quanto necessário. Desejoso da força possuída pelos advogados, Quintanilha teria reagido da forma que considerava natural, aproximara-se do amigo e tentara comprá-lo com presentes e favores para tê-lo sempre perto quando necessário. Sendo incompatível com as ambições de Gonçalves a aceitação de um lugar submisso ao lado de Quintanilha, somente restava aos dois seguirem caminhos separados.

Visto que os amigos não seguiram caminhos realmente separados, tendo antes encontrado uma forma de acomodação mutuamente vantajosa, podemos postular a outra interpretação para as linhas mestras do conto: o narrador de fato brinca com a relação entre o fato real e o fato imaginado, e ao mesmo tempo demonstra a relatividade dos valores morais. Sustentar esta última interpretação é admitir que no texto do conto de Machado de Assis há um narrador que alcança o cume da desfaçatez pelo exercício do despistamento, e da intriga, em um nível poucas vezes igualado por Machado. Joga este narrador com o conhecimento compartilhado pelos leitores, ao mesmo tempo em que evita explicitar verbalmente a real natureza da relação entre os dois.

Deus_grego είπε...

Como elemento unificador do conto, em qualquer das linhas de interpretação, há a questão da herança que se mostra fundamental. A posse da herança foi o que possibilitou a Quintanilha o reencontro com o amigo: “Herdara os bens de um tio, que lhe davam de renda cerca de trinta contos de réis. Veio para o seu Gonçalves que advogava no Rio de Janeiro” (ASSIS, 1997: p.708). Sendo a herança a causa do reencontro, ao menos pela emancipação material plena que propiciou a Quintanilha, com o conflito do retrato de ambos esta se demonstrou insuficiente para garantir a felicidade da dupla, uma vez que ficou patente a incompatibilidade dos desejos que ambos nutriam. Quintanilha desejava Gonçalves, mas por fim este de fato desejava o sucesso profissional e a herança.

Em uma sociedade na qual o relacionamento homoerótico não era aceitável, fazia-se necessário o estabelecimento de um acerto que os protegesse das conseqüências sociais de afetos desautorizados. Se a Quintanilha a maledicência de fato não afetava devido à emancipação financeira, para Gonçalves a condição de solteiro limitava as oportunidades de ascensão social, que demonstrou desejar obter por esforço próprio, mesmo não dispensando os benefícios da proximidade do amigo e da herança. Compreendendo a indisposição de Gonçalves para se sujeitar da forma esperada afinal, é o próprio Quintanilha quem sugere: “_Você por que não casa? Perguntou-lhe um dia; um advogado precisa casar” (ASSIS, 1997: p.711).

Neste ponto gostaria de enfatizar que se não há no conto a afirmação de um relacionamento de natureza homoerótica, ao menos é possível defendê-lo de forma consistente como o desenrolar de um jogo de desejos de natureza homoerótica, que é sugerido pela opinião implícita do narrador e reforçado pela maledicência da senhora que os chamava de “casadinhos de fresco” (p.711). É visando vencer as resistências à ascensão profissional do amigo que Quintanilha se afasta, e procura o casamento que o reconciliaria com a família. Mas, tão falso é este amor repentino que termina mais subitamente do que começou, com a renúncia em favor do mais necessitado de camuflagem matrimonial, Gonçalves.

Como futura esposa, a jovem Camila demonstrava ser discreta e possuir qualidades suficientes para fazer par a um aristocrata, a um advogado ou até mesmo a um desembargador, pois afinal: “Ouviu ao primo o elogio da finada mulher; numa ocasião em que Camila os deixou sós, João Bastos louvou as raras prendas da filha, que afirmava haver recebido integralmente a herança moral da mãe” (ASSIS, 1997: p.712).

Se não há no conto a consumação do relacionamento homoerótico dos personagens principais, pelo menos, há para além das insinuações do narrador a presença de um jogo de desejos que é expresso pelos olhos umedecidos e pelas emoções de ambos, que não puderam e talvez nunca pudessem ser elaboradas nos termos do que de fato sentiam um pelo outro. Se há algo a acrescentar neste espaço é o diálogo final entre os amigos, que contém uma possível resposta para o enigma dos dois, mesmo que de forma vaga. Comunica Quintanilha a Gonçalves que renunciará à prima em seu favor, isto de forma desencontrada, sem mencionar a real natureza do assunto e a identidade do que ou a quem se refere: “_Entendo, disse Quintanilha subitamente; ela será tua. _Ela quem? quis perguntar Gonçalves, mas já o amigo voava, escada abaixo, como uma flecha, e ele continuou as suas razões de embargo” (ASSIS, 1997: p.714-715). Com quem ou com o que o advogado sonhava? Com a herança? Com o amigo Quintanilha? Com Camila sabemos que não... .

É manejando o jogo dos desejos que Machado de Assis, e seu narrador não confiável, acaba por abordar no plano da não explicitude verbal a temática do amor que não ousa, e nem sempre precisa, dizer o nome para ser percebido.

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